domingo, outubro 26, 2008

Rascunho

Agora, diante do meu silêncio, estou fixadamente olhando, a porta.
Na realidade, não é nada disso; não quero entrar num tema de infernos. Acho que estou sentindo um ciúme que nunca havia sentido antes. Um ciúme que nasce na distância das falas e no desencontro. Um ciúme que deixei crescer e que alimentei. Porque a falta que me fazes torna-me infantil demais a ponto de não reconhecer que sentir ciúmes é comum. Não sei se arrancarei alguma coisa dessa sua alma crescida e forte (a minha continua pequena e frágil... digo sem dramas).
Mas na última noite, escrevi uma poesia, com letras de sonho. Dizia que eras a beleza em forma de gente e que o sonho nunca acabava. Não havia ritmo e rima, eu escrevia certo no vão da minha mente. Literatura inconsciente.

-Como as coisas podem ter ocorrido assim? Da forma mais mascarada possível?

-Eu sei falar sobre o que quisermos, a menos que queiras dormir.

A cama ainda cheirava a suor e teor embriagado da imagem de um quarto envelhecido pelas roupas de brechó e pelas mantas de carneiro que traziam para o vazio um pequeno alívio à respeito de sua condição.

As pernas jogadas para o alto reluziam fortemente, eram quase espelhos.

A boca não conhecia a ruína nem a miséria:

-- Ah, lindo dia hoje, não?

domingo, outubro 19, 2008

Um tipo esnobe

As luzes acesas, surpreendentemente acesas, na sala de estar, não precisam estar ligadas, já que não havia ninguém em casa. Perdoando a fraqueza da narração da TV, ele estava deitado no seu novo divã, esperando que a história do dia começasse. Mas a propaganda de sempre, enrolava e aumentava a demora, tornando tudo muito cansativo.
Viajou os olhos até o outro lado, onde não havia luz, e até lá foi. Onde não consegue ver, consegue imaginar e quando imagina vai mais longe. Está onde não conseguiria chegar, acordado e lúcido. É como quando usa drogas, sente-se dentro de uma leitura fútil juvenil e eleva-se, pesado até onde pensa que é um local sublime.
Ele, como de costume, não consegue fazer com que ninguém o ame, até porque esse amor não é de verdade. Tudo é uma regra de contato, um novo protocolo de sobrevivência. Mas ao redor está escuro, os seus olhos cerrados dão a dimensão de que precisa. E no seu pensamento divaga.

"Se hoje possível fosse, explodiria um trem e voltaria a pé pra casa, beijaria meu pai na boca e me deitaria, incestuoso,na cama. O susto que a destruição do símbolo me traz é abstrato. Eu sou enjoativo, nauseabundo quando consigo. Porque geralmente meu ego não infla-se sutilmente. Não quero reservar minhas fontes... Estou acusando quem não conheço de algo que não sei se é real, por raiva de mim mesmo. Sou invejoso. Eu dilacero-me ao ver as coisas ruindo ao meu redor; as coisas que eu amo ruindo. E eu sei que posso fazer muitas coisas. Coisas coisas coisas, palavra que ficou em minha mente. Coisa, oia asco aí com as corisas. Tenho de rir para não me machucar."

A trajetória do relato não chega a lugar algum e a emergência de si, pretenciosa, o empurra a ficar sozinho. Parece que o que precisa é reconhecimento. É mentira. O que quer, é uma conversa de fora pra dentro. E quando imagina, está tendo.
Ele transforma seus ciúmes em raiva, sua raiva em lágrima, sua lágrima em desejo, seu desejo em excitação, sua excitação em gozo, e seu gozo em segredo. Ele representa, de forma concreta e real, o ciclo pútrefo do que é o humano no seu menor estado de graça. Mesmo com alguém por perto, não consegue sustentar-se. Ele é o tipo de gajo que despreza alicerces, pois tem orgulho e quer ser independentemente feroz.

domingo, outubro 05, 2008

Fragmento

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera... espera... ó minha sombra amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!...

(Espera - Florbela Espanca)